data-filename="retriever" style="width: 100%;">Gosto dos meus amigos bem do jeito que eles se apresentam, cheios de defeitos, de multiformes vícios redibitórios. Geniosos, uns pegam de arranque quando provocados. Os da paz, a maioria, só se for no tranco, e vários ainda é preciso empurrar no lançante. Tanto podem ser elogiadas referências éticas ou motivo de renitentes condutas arrevesadas. Não importa o caudal de imperfeições. Só assim ficam parecidos comigo. Preocupo-me quando estão doentes, quando vão mal de negócios, quando os filhos passam a lhes roubar o sono, pois a vida dos meus amigos é um pouco a mesma minha.
Os meus amigos, sem exceção, têm mais tempo vivido do que por viver. Por isso, deixaram de dar bola para os detalhes, as miudezas do espírito. Importa-lhes somente aquilo que se aproxima do essencialmente humano. Meio maquinistas, aparecem sem dar notícia, e somem quando menos espero. Os que permanecem pela volta substituem os que se foram, como se as partidas e regressos imitassem uma roda-gigante que mal vira a roda, trocando de passageiro a cada volta que dá.
Alguns eu avisto com maior frequência, pela circunstância da proximidade espacial. É com estes, os chegados, que vou construindo uma emotiva história de amizade, residente, até o trinar do clarim lancinante, no róseo compartimento das minhas mais adocicadas lembranças. Amigos tão puros quanto o canto do garnisé peito de gralha, anunciando mais um dia que se achega na cola da estrela d'alva.
Outros eu vejo bem menos do que gostaria, em encontros proporcionados mais pelo acaso, pelo futebol, pelas pescarias, do que pelas esquinas. Mas, enfim, todos os meus amigos vieram ao mundo dotados de um sentido extremado do que é a vida, suas margens e remansos, vergas e pontilhões. Vitrais de cores matizadas. Se algum vaso se partiu pelo caminho, a culpa foi só minha, que não soube juntar os cacos com a cola do perdão. Bêbados afáveis, loucos de acorrentar, moradores em estéticas casas ou em algum grotão que até Deus tem dó, os meus amigos são interessantes personagens com dons terapêuticos, e me fazem um bem que só eu sei. Pena que cada vez que morre um amigo eu também fique pra morrer...